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Contentor 9: Em Pessoa

A palavra tinge tanto quanto o silêncio que a projecta ou o gesto que a sustenta (ou deixa cair). A palavra teatral, o acto teatral, tem essa tripla instância: o actor profere, o actor desenha a giz-de-corpo, o actor cala. Ora, na apropriação dramatúrgica, cénica e interpretativa que o encenador-actor faz do poema-trágico A Passagem das Horas cabem, interpolados, esses mesmíssimos momentos - a palavra arauto ou capitulante, o gesto impetuoso ou quebrantado e o silêncio - grande magma, demiurgo de todas as coisas.

"A Passagem das Horas" © Filipe de Macedo

© Filipe de Macedo

Nelson Cabral em Pessoa sugere desde logo a duplicação do actor ele mesmo ao atribuir (segundo o próprio) ao eu pessoano Álvaro de Campos essa condição de personagem. A enunciação do paralelo (que nunca se paradoxa) da vastidão íntima do mundo e da exiguidade exterior de nós é uma cesura que atravessa todo o espectáculo, ou o texto feito espectáculo, essa condição duplicada do homem-eu e do homem-mundo como constitutiva dum programa pessoal de aspiração ao múltiplo sem desformatar a possibilidade dum eu coerente no uno e no diverso. Ser tudo em toda a parte, diz o Pessoa-Álvaro de Nelson Cabral; ou eu, ou tu mesmo, convocados que somos todos, desde o início da função, a sermos parte dessa parte-partícula de Pessoa. Neste sentido muito particular, é sempre um espectáculo a partir de nós, um connosco, e talvez não um acto dele (actor) para nós. Entre o clamor da cosmogonia da maravilha maquinal do mundo que o Homem (re)cria e esse mesmo mundo que o atravessa e dilacera e que o muda irreversivelmente, antropodisseia do Homem face a si mesmo no espelho do mundo, há uma cama-nau-viagem no quarto do mundo e nos seus extremos há panejamentos-velame à ré e à proa, braços, braçadas adentro do questionamento. E por isso se vê tanto (nada vendo) da janela exígua daquela infinda assoalhada, metonímia da primeira (ou da última) casa do mundo. O Homem Triunfal é exactamente o mesmo homem que sofre a ressaca do mundo. Essa condição duplicada do ser não é afinal o lugar dum apaziguamento interior, mas também não é o terreiro dum confronto aberto - é, diria, um campo de desassossego, preço de licitação do permanente devir; dois lados simétricos duma mesma avenida que nunca se irão unir. A ilustração dessa dualidade cri descortinar, como espectador, no ante-momento final, quando a euforia do homem Álvaro de Campos se veste de roupas menos confiantes, num apogeu trágico confessional justo quando no preciso extremo oposto do espaço-cénico um brinquedo lúdico e risível parece escarnecer do próprio homem e da sua alta voltagem desfalecente. A felicidade maquinal, um artefacto do mundo, é a última luz do espectáculo. Acaso!? Claro que não! O pouco mais que uma hora de espectáculo passa e repassa por nós, produzindo gerúndios: sucessivos começos inacabados. E saímos (do mundo para o mundo) com as palavras a convocarem-nos, a retardarem uma leitura segura do mundo, não mais como o conhecêramos.

"A Passagem das Horas" © Fernando Nuwanda

© Fernando Nuwanda

Nelson Cabral, mais do que emprestar-se a Pessoa na pessoa de Álvaro, pede-nos emprestadas as vozes para que possa ele chegar à voz do poema íntimo que habita o poema escrito. Não por acaso, digo, é ele-mesmo-já-outro o mestre de cerimónias que nos abraça numa espécie de proscénio de fraternidade, ideal duma civilidade moderna cara ao Homem Novo de que tudo se sente capaz, e nos conduz ao seu quarto litúrgico de cuja cerimónia é o oficiante laico, esse mesmo que invocará todos-um-mesmo-Deus! Escutai-a e levai-a! Este é o meu corpo em palavra. Que o façam em memória de mim... Nelson Cabral é, nos pouco mais que sessenta minutos de palco, O Deus das Pequenas Coisas (título roubado a Arundhati Roy) em nome de todas as Altas Cousas. E quando digo ser este espectáculo A Passagem das Horas um momento feliz de palco é porque se sai maior e mais inquieto do que quando se entra. É portanto feliz a revisita que Nelson Cabral faz a Pessoa, enquanto pessoa, o ante-lugar e condição do actor, pelo menos àquele que é adjectivamente actor!

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A Passagem das Horas​, de Fernando Pessoa | Álvaro Campos - encenação e interpretação: Nelson Cabral​ - produção (Lisboa): Buzico Produções Artísticas​. Em cena: 1, 2 e 3 de Setembro, pelas 22h00, no Village Underground Lisboa​. Bilhetes à venda: BOL​, Lojas Fnac​, Bilheteira CTT​, Worten, El Corte Ingles, nos locais habituais e na bilheteira local 1 hora antes do início do espctáculo. Reserva de bilhetes: producoesartisticas@buzico.pt ou 210 994 581

Luís de Macedo escreve de acordo com a antiga ortografia

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