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«Vejo-me a ser ator a vida inteira»

RICARDO LÉRIAS. Sereno, atento e focado, assume ser uma "pessoa de pessoas". Com a certeza do caminho a seguir e a gratidão pelo percurso já trilhado, Ricardo Lérias, confessa-se um apaixonado por cinema. Por estes dias, anseia poder dedicar tempo à formação enquanto digere o sucesso do projeto que integra.



Como é que está a ser a experiência de integrar o elenco do espetáculo Alice - o outro lado da história?

Única, é a palavra certa. Foi um processo de ensaios moroso, difícil, diferente de tudo o que fizemos, com muito trabalho de texto enquanto aguardávamos por autorização do Pavilhão 30 do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Neste espetáculo, a dinâmica em cena é totalmente diferente do que o que estamos habituados, ou seja, não há um palco com um cenário fixo. Os atores andam de sala em sala. Isso fez com que não pudéssemos criar sem estar no local. Por isso, por decisão do encenador João Ascenso, optámos por fazer uma intensa leitura de texto, pesquisa de personagem, trabalho de personagem. Trabalhámos com o autor, Paulo Miguel Ferreira, sobre que personagens eram estas. Eu, por exemplo, faço um juiz presidente, por isso houve um grande trabalho de pesquisa sobre o que seria um tribunal na época Vitoriana. Tudo isto para dizer que foi um trabalho totalmente diferente do que eu tenho feito até ao dia de hoje.


E depois desse trabalho?

Depois passámos para o Pavilhão 30 do antigo Hospital Júlio de Matos que estava totalmente despido e, vendo o espetáculo, percebe-se o trabalho e a diferença. O trabalho de criação de cenário ia sendo feito e ia-nos ajudando porque fomos criando através do texto, da personagem... Resumindo, acho que foi mesmo um trabalho único, difícil, duro, desgastante, com muito frio e noites mal dormidas, mas muito compensador pelo grupo que faz parte do projeto. Somos muito unidos e durante o percurso, assim como durante o decorrer de cada sessão, apoiamo-nos mutuamente porque muitos colegas que estão constantemente em cena e precisam do suporte dos outros. Acabámos por conseguir criar essa união do grupo, apoiados pela Byfurcação, pelos contra regras... Foi um trabalho diferente, bastante compensador e muito agradável.


E com um grande retorno...

Essa é a melhor parte. Nós desconfiámos que tinha tudo para dar certo, mas tentámos controlar as expectativas. O espetáculo que esteve antes do nosso no Pavilhão 30, o E Morreram Felizes Para Sempre, foi um sucesso e sabíamos que, ao irmos para lá, ia sempre existir alguma comparação. Mas são espetáculos diferentes. Nós também assentamos no teatro imersivo, mas no nosso existe uma narrativa, há um texto e as pessoas seguem a história. À medida que o tempo foi passando, percebemos que as coisas podiam correr muito bem. E tem corrido muito, muito bem. Desde o início que o impacto tem sido muito. Era para ser só até fevereiro, mas temos a possibilidade de avançar e marcar datas em março. Era para ser só sextas e sábados, mas já tivemos semanas em que abrimos terças, quartas, quintas, sextas e sábados.


Sempre esgotado...

Sim, sempre esgotado. A lotação é limitada e o valor do bilhete é elevado. Por isso é que, juntando todos os fatores, consideramos que é mesmo um sucesso. A procura tem sido muita e temos uma lista de espera gigante o que é bom. Está a ser bom. É bom fazer parte deste projeto, contribuir para o sucesso e é bom fazer parte do grupo.


Disseste que este projeto foi algo diferente do que já tinhas feito. Veio no momento certo?

Sim... Muito ponderado porque eu percebi logo o desgaste horário que iria ser. Eu tenho outra atividade profissional e vi que ia ser muito difícil conciliar as coisas, mas realmente conseguimos, com o apoio dos meus colegas e muito bem coordenado pelo João Ascenso na questão dos ensaios e de toda a preparação. Mas sim, veio na altura certa. Como não tenho feito muito teatro, tem sido bom voltar e ter todo este reconhecimento.


O que é que tens feito?

Eu comecei, como quase qualquer pessoa que está no teatro, na escola. Depois, fiz parte de um grupo de teatro amador em que era o mais novo, em Serpa, e depois vim estudar para Lisboa. Na altura percebi que era aquilo que eu queria fazer, mas nunca tive condições para entrar num curso profissional. Vim para Lisboa para estudar e trabalhar. Acabei por entrar em História e comecei por fazer esse curso, mas acabei por não o concluir. Comecei a trabalhar em figuração para pagar o curso e depois fui convidado para fazer produção e acabei por estar "do outro lado" durante muito tempo. E ficou sempre o "bichinho". Havia algo que me faltava. Depois as equipas que eu integrei perceberam que eu gostava de representar e sempre que era preciso fazer algum papel pequeno e que esse ator não aparecia, ia eu. Foi assim que fiz algumas participações em telenovelas. Mas nunca passou daí. Até que em 2008 fui convidado a entrar num grupo de teatro semi-profissional que eram os Hipócritas, sediados no Instituto Franco-Português. Fiz duas peças com eles e foi o meu ressurgir no palco e eu percebi que era ali que tinha de me focar. Depois fui para Londres seis meses, quando voltei, a Ana Rangel e o João Ascenso dizem-me para fazer o casting de um musical infantil da Plano 6 - Careta, a tartaruga que defende o planeta. Fiz o casting em 2011 e fiquei. Estive um ano em cena no Auditório do Oceanário. Foi um ano bastante intenso mas extremamente compensatório. Depois disso estive no Teatro Rápido numa peça escrita e encenada pelo João Ascenso, o Não Há Culpa, juntamente com a Anaísa Raquel. Depois fiz o Um Ano Sem Ti. Foi há um ano. Um trabalho também escrito e encenado pelo João, produzido pela Buzico! Produções Artísticas e que teve um retorno de crítica muito bom. Foi importante porque, como não tenho formação em teatro, há sempre uma falta de confiança grande. Eu acho que as pessoas têm de ter formação naquilo que fazem. E com Um Ano Sem Ti eu tive um ótimo retorno e percebi que tinha de ir estudar porque me fazia falta. Entretanto decidi que 2015-2016 seria para fazer um curso, mas não foi possível. Surgiu a oportunidade de fazer o Alice... e eu ponderei. Achei que se o convite tinha surgido, por alguma razão tinha sido, e fiquei. Entre outras coisas, fiz um projeto da Spotlight para escolas. Foi gravado em vídeo e foi um grande desafio. A seguir disto conto, então, ir estudar.


Dizes que ao longo do teu percurso foste sentido que o teu caminho era por ali. Continuas a sentir isso?

Sim, sem sombra de dúvida. Desde miúdo que tenho um problema: quando me perguntam que quero ser, há quem tenha logo a resposta, mas eu nunca fui capaz. E continuo assim. Eu adoro cozinhar, portanto eu vejo-me a cozinhar uma vida inteira. Eu vejo-me a trabalhar com crianças uma vida inteira. Eu vejo-me a trabalhar com animais uma vida inteira. E também me vejo a ser ator a vida inteira. Ou seja, há um rol de coisas que eu podia fazer ao longo da vida. O que acredito é que há uma das opções que é central. Uma pela qual se sente um calor gigante quando se faz, quando se vê fazer... Às vezes estou a ver colegas meus em cena e começo a chorar de emoção. Sinto um orgulho enorme pelos meus amigos e colegas e penso que eu também adoraria estar ali. Portanto, sem dúvida alguma que sinto que o meu caminho é a representação.


Tens feito sobretudo teatro, mas também já fizeste participações em televisão e em cinema. O que é que fica dessas experiências?

Televisão é muito ingrato para quem faz porque não há tempo para construir nada e isso é o que o trabalho de ator obriga: construir uma personagem. E na televisão é tudo muito rápido. Gravam-se cenas de trás para a frente, sem seguimento, e isso é muito desafiante e foi isso que até agora já experimentei. Há duas cenas para fazer, vai-se dois dias para estúdio, mas faz-se primeiro a última cena e só depois a primeira. Exige muito mentalmente. Não há um estudo de personagem, a não ser que seja um personagem-tipo. Dito isto, adoraria ter uma personagem que exigisse mais, que exigisse construção.


Em televisão e em cinema?

Eu acho que cinema é uma das minhas paixões, sem dúvida alguma. Eu acho que é onde quero apostar. Pela forma como chega ao público, pela forma como as imagens são contadas, pela forma como toda a história é montada... A mim, como ator, diz-me imenso, portanto, acho que a formação que hei-de fazer será nessa área.



Isso leva-nos a outra questão: tendo em conta este percurso e essas vontades, o que esperas que aconteça?

A minha prioridades neste momento é mesmo formar-me, estudar e perceber em que tipo de ator é que me posso tornar. Há muita coisa a ser construída, eu acho que é um processo de uma vida, mas o que sinto é que tenho de perceber no que é que me quero focar e, sem dúvida alguma que, para me fortalecer, eu tenho de procurar formação. É claro que, se me surgirem determinados projetos ou hipóteses, eu não direi que não porque é sempre um desafio, mas neste momento a minha prioridade é formar-me para lutar por aquilo que eu acho que é o que quero ser, que é ator.


A questão da formação é pessoal, porque consideras que é necessário, ou existem outros fatores?

Eu acho mesmo que as pessoas têm de ser formadas naquilo que fazem.


Mas é só uma questão pessoal ou sentes que existe preconceito?

Sim, já senti preconceito por não ser formado. Principalmente de colegas.


Já sentiste isso na pele?

Sim. Tive um projeto no último ciclo de novos atores do São Luiz Teatro Municipal. Era uma adaptação dos Anjos na América feita pela Joana Duarte Silva e encenada por ela. O elenco era eu e duas atrizes, uma delas também sem formação. Fomos ao casting e ficámos. Fomos escolhidos num leque gigante de projetos. O nosso foi um dos 10 escolhidos por um júri com gente como Adriano Luz, Beatriz Batarda, Costa Reis... Gente muito conceituada. Depois de sermos escolhidos, no dia em que apresentámos o projeto, houve gente dos outros quatro projetos que nos fizeram sentir mal por nós não termos formação. Desde essa altura que sinto isso, que há preconceito.


E agora queres compensar essa lacuna.

Sim. É por enriquecimento pessoal e profissional. Eu tenho sido convidado para trabalhos por pessoas que já me conhecem enquanto ator, mas na altura de um diretor ou encenador ter de escolher entre mim e outros atores com formação, eu percebo que eu fique em desvantagem por não ter formação. Faz sentido.


Posto tudo isto, quem é o Ricardo Lérias?

O Ricardo Lérias é, acima de tudo, uma pessoa de pessoas. Não consigo imaginar a minha vida sem pessoas. Não consigo imaginar a minha vida sem o grupo de amigos/família que construi ao longo da vida e isso também me levou à escolha profissional que fiz. O trabalho com o público, o trabalho com as emoções, o trabalho com o que provocamos no outro é muito importante para mim. Importante quando desenvolvo relações a nível de amizade, a nível profissional, é importante conseguir trazer o melhor dos outros para que consiga viver com eles o melhor que nós temos no mundo que é precisamente a amizade, o amor. E tudo o que faço é reflexo disso. A minha vida é dedicada ao outro, é enriquecida se conseguir trabalhar com o outro e ver o melhor do outro, sem dúvida alguma.



Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

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