«Cantar depende do que nos vai cá dentro»
ANA LUÍSA. A paixão pela música começou em adolescente numa banda filarmónica. Daí até ao canto lírico, foi um pulo. Hoje, o sentimento mantém-se. A dias de voltar a participar no Eurovision Concert, a cantora, fascinada pelo ensino e sem tiques de vedeta, revelou-se atenta ao próximo, numa conversa feita com muitas e deliciosas gargalhadas.
Voltas a participar no Eurovision Concert, em Setúbal. Como é que tem sido a preparação para mais este momento?
Participo pelo terceiro ano consecutivo e tem estado a correr tudo bem. Isto surgiu agregado a uma outra atividade minha, além de cantora lírica, que é a de professora de canto.
Como é que seres professora de canto te levou a cantares no Eurovision Concert?
Aconteceu porque eu sou professora do Rui Andrade, que em 2014 participou no Festival da Canção. Foi através dele que conheci pessoas do Festival e ligadas à Eurovisão. Depois de participar no certame, o Rui foi cantar a Setúbal, a essa iniciativa que é o Eurovision Concert e, na brincadeira, perguntaram-me "ah, Ana Luísa, e tu quando é que vens cá cantar?". Na altura fiquei surpreendida. Expliquei que não era bem o meu registo e que estava ali como professora e não como cantora. No ano seguinte, acabei por ir cantar e esta já é a terceira vez que acontece.
Para quem não conhece, que iniciativa é essa?
É um espetáculo só com músicas da Eurovisão e do Festival da Canção, em que existem vários artistas, quer portugueses, quer internacionais, a irem lá cantar, juntamente com outros cantores que também cantam músicas do Festival.
É mais um momento para os amantes do Festival da Canção e da Eurovisão.
Exatamente, é mais um momento para matar saudades do que passou e antecipar a chegada de uma nova edição que, desta vez, será em Portugal, por isso, existem muitas atenções em torno deste evento.
Partilhas deste entusiasmo que se tem notado desde que o Salvador Sobral ganhou a edição deste ano?
Eu gosto muito, mas acho que sou um bocadinho menos acérrima do que os verdadeiros fãs da Eurovisão. Estive muitos anos afastada do Festival da Canção, agora que me aproximei, percebo que é emocionante. É um ambiente e um mundo fascinantes.
Um mundo que muitos de nós desconhecemos.
Completamente. Eu fui a Copenhaga, em 2014. Já esperava algo com muita gente, com muita loucura, com muita música, mas é, de facto, um mundo à parte e que nos passa despercebido. Espero que na próxima edição, como será em Portugal, que os portugueses tenham possibilidade de sentir esse mundo. Na altura sei que pensei que ia mas que não ia divertir... O que aconteceu é que me diverti mesmo muito!
Há pouco falavas de como começou a tua ligação recente ao mundo da Eurovisão, que foi através do teu trabalho como professora. É algo que tens vindo a fazer em diferentes escolas e em âmbitos também diferentes. Gostas desse papel de professora?
Adoro! Cada vez gosto mais e acho que a tendência é eu dedicar-me cada vez mais ao ensino. Vou continuar a cantar como coralista no São Carlos, claro, mas vou continuar a dedicar-me muito ao ensino. Adoro ensinar!
Do que percebi, ensinas canto a pessoas de diferentes faixas etárias. Como é que é essa possibilidade de trabalhares com diferentes idades?
Sabes, mesmo que tenham idades iguais, uma pessoa é sempre diferente da outra. Ensinar depende muito da outra pessoa. Tem de estar muito relacionado com a personalidade e as vivências de cada aluno. Ensinar canto não é só ensinar a respirar e dizer para emitir som. É muito mais que isso. Tem a ver com o estado de alma da pessoa, a gestão da energia e levá-la a fazer tudo de uma forma natural. Cantar depende do que nos vai cá dentro.
Tu dás aulas só a quem quer cantar?
Sim, está mais direcionado para esse segmento. Mas também estive envolvida como professora no curso de Terapia da Fala do Instituto Politécnico de Setúbal, numa disciplina que tinha a ver com a diferença entre a voz cantada e a voz falada. O objetivo era perceber como é que um terapeuta da fala pode tratar um cantor.
Gostaste dessa experiência?
Gostei e aprendi imenso com os alunos que ficaram deslumbrados com o mundo da música. Não conheciam aquele caminho e aquela possibilidade como percurso profissional. Pelo menos duas pessoas ficaram interessadas em seguir esse caminho.
Esse é o teu lado de professora, mas enquanto cantora já tens um percurso com alguns anos.
Sim, alguns anitos.
Como é que tem sido esse teu percurso?
Complicado. [risos]
Porquê?
Eu sei que há muita competição na pop e na música mais comercial, mas na música lírica, o mundo é um bocadinho mais fechado, mais exigente. Se não se corresponde àquele estereótipo, não se consegue entrar numa engrenagem de agenciamento e as coisas não fluem. Eu entrei em São Carlos, onde tenho um trabalho fixo no Coro. Depois, andei por Itália com uma professora minha e fui fazendo uns concertos.
Hoje em dia continuas associada ao São Carlos?
Sim.
Continuas a fazer outros concertos?
Sim, quando há possibilidade.
O mundo do canto lírico e da música clássica, no geral, é um nicho que só algumas pessoas conhecem. Tu, estando nesse nicho, apercebes-te disso?
Hoje é diferente do que era há 27 anos, quando eu entrei para o Coro e comecei, profissionalmente, este percurso. Há 27 anos, era um nicho muito mais fechado, muito mais elitista, muito mais cheio de regras. Hoje em dia é menos. É mais aberto para os jovens. Já se pode ir à opera de calças de ganga, de uma forma informal. Há uns anos, tinha de se ir, pelo menos, de fato.
Vês interesse dos jovens nessa área?
Sim, tem vindo a crescer. Nós temos, muitas vezes, casa cheia e a audiência é muito equilibrada entre um público de faixa etária mais jovem e os outros espectadores mais históricos. [risos] Históricos porque há 27 anos que encontro lá as mesmas pessoas. [risos]
Além da audiência que dizes que é, hoje, mais heterogénea, em termos de artistas que queiram entrar nesse mundo, também existe maior interesse?
Há mais escolas. Há mais cantores. Há muitos jovens que vão para o estrangeiro estudar e tentar a sorte. Há uma vaga de cantores novos, jovens, espetacular. Há 27 anos não se via tanta gente.
Vês muito talento, hoje em dia?
Sim, há muito talento, mas o que assistimos é que, em Portugal, só há um coro, só há uma casa de ópera. Qual é a hipótese? Um concerto aqui e outro ali? Isso é difícil para quem quer ter uma subsistência da sua arte. É assustador.
Achas que isso podia mudar?
Podia se a cultura mudasse. [risos]
Achas que é aí que reside a solução para esse problema?
Sim. É aí que devia começar. Cada vez há menos música nas escolas e é de pequenino que se começa uma carreira destas.
Foi o que te aconteceu?
Sim, comecei cedo. Tinha 14 anos.
Em Aveiro...
Em Aveiro e por causa de uma birra. [risos]
Conta-me tudo!
[risos] Um dia, vinha da escola, fui visitar os meus avós, e quando chego, pergunto pela minha irmã e a minha avó responde-me que ela estava na música, num grupo de meninos que estavam a aprender música e que iam formar uma filarmónica. Fiquei danada e perguntei-lhe porque é que eu não ia também! E lá fui para a filarmónica! [risos] Comecei a estudar clarinete e só depois é que veio o canto. Houve uma altura que o grupo participou numa festa e era preciso cantar um salmo e lá fui eu. A loucura do canto começou nesse dia! [risos]
Hoje em dia, a loucura do canto continua, e o clarinete?
Já não toco, só canto! [risos] O instrumento era da filarmónica e, quando vim para Lisboa, tive de o devolver.
Já falámos aqui do teu percurso. Neste começo de setembro, tão propício a balanços, diz-me: como é que imaginas a tua vida nos próximos tempos?
Até 9 de setembro vou estar num stress danado! [risos] A preparar o Eurovision Concert. Vou cantar uma música levada à Eurovisão pela Suécia, em 2009.
Ficas muito stressada com esta participação?
Nestes concertos, fico. É fora do meu meio. Nunca sei bem como é que corre, como é que funciona. Para mim, é fácil ajudar os outros a ir por um caminho. Estar eu na posição de quem canta, é mais difícil. Fico dependente de um microfone, que não estou habituada. Mas também gosto. É uma aprendizagem.
E tirando isso?
Tirando isso, vem mais uma temporada inteira de São Carlos e vêm coisas novas em termos de ensino. Vou continuar na Academia de Almada e agora surgiu a hipótese de abrir uma turma de teatro musical, onde eu também vou participar como professora. É mais um mundo que vou descobrir e que me entusiasma muito.
Ora, depois desta conversa, diz-me: quem és tu, Ana Luísa?
Eu sou uma pessoa normalíssima. Não sou nada diva, apesar de algumas pessoas me tratarem por diva. [risos] Sou uma pessoa algo lutadora pela justiça e pelo bem-estar dos outros. Ataco quem eu acho que faz mal e prejudica os outros. Não consigo assistir a injustiças. Ataco, fico séria e danada. Mas sou boa pessoa. Sou fofinha! [risos] Não faço mal a ninguém! [risos] Costumo dizer que sou grande, mas não sou grande coisa. Se me tocarem no coração, desmantelo-me toda! [risos] A Ana Luísa é, sobretudo, uma pessoa que adora ajudar os outros e vê-los crescer!
Agradecimentos: Village Underground Lisboa
Xavier Pereira escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico