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«Eu sou muitas coisas»

MARTA DE SOUSA CORREIA. Tem dificuldade em definir-se, mas sabe que é no palco que é feliz e onde se encontra verdadeiramente. Quer seja a dançar, a representar ou a fazer as duas coisas juntas. Entusiasmada com o futuro, orgulhosa do passado está concentrada em viver o agora, se possível, com muito trabalho.

Inauguraste recentemente um espaço chamado Traça, em Lisboa. Que projeto é este?

É uma plataforma artística para novos movimentos e artistas emergentes. Tenho-me dedicado muito intensivamente a isso. Dirijo o projeto e seleciono que apoio dar a outras ideias. Espetáculos e artistas que precisam de uma casa.

Onde é que é?

É aqui em Lisboa, no Campo Mártires da Pátria, junto ao Hospital dos Capuchos. Mas paralelamente, além de todo esse trabalho de direção artística, continuo a trabalhar como atriz e como bailarina - sobretudo clássica e contemporânea. Estou a ensaiar três espetáculos e a gravar um filme.

Como assim? Explica lá isso melhor.

Então é assim: dois espetáculos são de teatro-dança. Outro é um espetáculo de teatro puro com a Mala Voadora. O filme é um projeto do Joaquim Pinto e do Nuno Leonel que começou a ser rodado há dois anos, entretanto houve alguns problemas com as filmagens e o trabalho ficou em suspenso. Está a ser retomado e eu vou entrar nas rodagens a partir de agora.

Como é que te organizas para fazer tanta coisa?

Não sei bem. Ando muito cansada, mas eu gosto. Quando nos sentimos cansados porque estamos a fazer o que gostamos é bom. Às vezes estamos em casa, sem nada para fazer, mas cansados mentalmente. Isso é mau. Mas neste momento da minha vida, ando extremamente cansada, sim, mas ando cheia de coisas para fazer, o que é muito bom.

Coisas que te entusiasmam.

Sim, que têm a ver com a minha área. Já fiz coisas que não tinham nada a ver comigo porque tinha de pagar as contas, mas agora não é esse o caso. Agora é algo entusiasmante porque é na minha área.

A tua área é algo que temos, obrigatoriamente, que dividir em duas, que são o teatro e a dança.

Sim... então, eu comecei a dançar ballet aos três anos e fiz toda a Royal Ballet Academy até aos 18 anos. Foram 15 anos! Cheguei a um ponto que já não aguentava mais, porque não tinha vida. Decidi parar de dançar quando acabei os gruas todos e pensei que não queria dançar mais. O meu pai era ator e por isso eu tinha essa sensibilidade artística. Quando desisti da dança achava que não queria fazer mais nada relacionado com aquilo e fui para Direito. Desisti no segundo ano. Fui fazer as provas para entrar no curso de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Entrei, fiz a licenciatura e nessa altura voltei a dançar porque percebi que gostava realmente de fazer as duas coisas e conjugá-las. Depois vim para Lisboa fazer Mestrado na Escola Superior de Teatro e Cinema e voltei a dançar mais afincadamente. Depois parti a coluna e tive de parar três anos. Agora voltei a fazer espetáculos de dança, desde há um ano e meio, mais ou menos.

E como tem sido esse regresso?

Eu tenho feito mais trabalhos de dança em Berlim e mais trabalhos como atriz em Portugal. Agora, regresso a Berlim em Junho. Tenho lá muitos amigos e fazemos sempre muitas performances e andamos em intercâmbios. Mas voltando à tua questão: sim, eu faço as duas coisas. A minha formação académica é como atriz, mas desde miúda que tenho formação em dança e isso nunca se perde.

Agora que já percebeste que te divides, assumes que tens duas paixões ou há uma que se destaca?

Não tenho nenhuma preferida. Gosto mesmo de fazer as duas e tento ao máximo conjugar as duas.

E consegues?

Em Portugal, é difícil. Há um movimento chamado teatro-dança que só duas companhias portuguesas é que trabalham bem com isso. Normalmente são mais formadas por bailarinos que têm alguma formação em representação do que atores com alguma formação em dança. Em Portugal é muito complicado conseguir trabalhar em teatro-dança.

Como é que é contar uma história com o teu corpo?

[Suspira] É incrível! Eu prefiro mil vezes fazer espetáculos em que não fale.

A sério?

Sim. Apesar de gostar muito de texto e, por acaso, ter sorte na maneira como a minha voz soa em palco, gosto muito de poder não falar em espetáculos, porque há a tendência para o ator trabalhar só com a cabeça.

Achas que os atores se esquecem do instrumento que o próprio corpo é na altura de contar uma história?

Sinceramente, acho. Mas também penso que não é culpa dos atores. Não lhes é incutido isso durante a formação. Um ator sabe que tem de trabalhar o corpo e o movimento, mas vê esse trabalho sempre como algo secundário. Faz-me imensa confusão ver um espetáculo com um ator que não saiba o que está a fazer com o corpo.

Isso acontece muitas vezes?

Sim, muitas, muitas. Por isso é que eu acho que o ator tem, cada vez mais, que pensar em trabalhar o corpo. Além da voz, das emoções... O corpo também ajuda a contar a história. E esse trabalho do corpo pode ser através da dança, das artes marciais.

Achas que hoje em dia já começa a surgir essa sensibilidade, entre os atores?

Acho que começa a surgir, sim, mas é um caminho longo. Se pensarmos nas três artes performativas - música, dança e teatro - quantas horas é que cada um trabalha por dia? O ator é o que trabalha menos horas e é um trabalho menos exaustivo, menos concentrado. Está bem que é algo que vai trabalhando, porque precisa dessa liberdade, mas treina menos. Além de ter de ensaiar, também precisa de treinar. E o músico e o bailarino treinam mais que o ator. Mas não deve ser assim. Em teatro, além da voz, o corpo também tem de ser visto como um instrumento.

Recuperando agora o teu percurso, fala-me sobre como corre o trabalho em Berlim.

É algo muito independente e quase experimental. Agrada-me muito. Gosto muito de trabalhar com companhias que me deem liberdade. Em Berlim, não há uma estrutura por trás. Sou eu e umas quantas pessoas que nos juntamos e organizamos tudo. É independente. Juntamo-nos e fazemos performances em vários locais.

A dança leva-te a trabalhar com diferentes organizações e até em diferentes países. Em termos de representação também tens trabalhado com várias companhias de teatro. Como é que essa experiência? Sentes-te mais rica?

Sim, sem dúvida. Acho que é muito importante ter conhecimento de várias culturas e teres conhecimento de backgrounds diferentes. É algo que me entusiasma muito e que enriquece muito o meu trabalho. Também é por isso que gosto de estar sempre a viajar e trazer esse trabalho para mim. Ao longo do tempo tenho percebido que não há problema em fazer diferente, desde que respeite o que me foi ensinado, mas tendo consciência que há mais por onde ir.

Este percurso revela um bocadinho a maneira como escolheste levar a vida e olhar para a tua arte.

Mas sabes, Xavier, houve ali uma altura em que me desnorteei.

Porquê?

Porque não tens trabalho que chegue e porque não consegues pagar as contas com a tua arte. Tens de trabalhar num quiosque, ou numa loja, ou na noite. E como fazes isso, ficas sem tempo para criar. Chega a um ponto em que pensas "ok, vou só desistir." E isso aconteceu-me. Nessa altura conheci algumas pessoas que me fizeram dar a volta. Essas pessoas mostraram-me que eu tinha de ver tudo de forma diferente. Eu tive de olhar e pensar "o que é que eu posso fazer para que surja trabalho e para ter oportunidades?". E surgiu a Traça e voltei a encontrar pessoas e as minhas peças voltaram a encaixar umas nas outras.

Não sei se concordarás, mas há atores que também perdem o norte mas nunca o encontram e não dão a volta à questão, como tu deste.

Sim, tenho consciência que dei bem a volta. Acho que toda a gente passa por uma situação como essas. Em que se questiona. Mas se conseguirmos chegar ao outro lado, é porque conseguimos ultrapassar os nossos problemas. Para mim, este ano tem sido bom nisso, sinto que vou resolvendo e crescendo.

Já foste dando algumas luzes sobre o que o teu futuro te reserva, mas pergunto-te: o que é podemos esperar de ti nos próximos meses?

Sei lá. Só quero muito, muito não parar de trabalhar. É só isso. Não procuro o que muitos artistas querem que é ter um certo reconhecimento. Eu só quero trabalhar porque é isso que me faz feliz. Quero sentir que faço parte. Preciso de me sentir feliz por realizar o que mais gosto de fazer que é dançar e representar.

[Risos] Eu acho que não sei bem ainda. É algo que vou sabendo. Vou percebendo, vou amadurecendo, mas acho que nunca vou conseguir responder a essa pergunta. Eu sou muitas coisas. É muito complicado definir-me a mim própria, a sério.

E lidas bem com isso?

Lido super bem com isso. Lido bem e gosto.

E isso já te define um bocadinho, não é?

Sim, sem dúvida.

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

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